Escrito em abril de 2019, Cinco Retratos é um conto breve que experimenta com a densidade de corpos e espaços.

Cinco Retratos

Os quatro convidados analisavam a estranha passagem cravada no meio da parede da cozinha enquanto o anfitrião contava sobre seu achado. Era uma fenda formada entre duas placas irregulares de concreto cobertas por manchas de umidade. Estreita, mas alta como um homem, com dois palmos de largura na parte superior e um palmo na parte mais próxima ao chão. Ao não refletir ou emitir luz, parecia não ter fim. Dela fluía uma corrente de ar constante que preenchia o ambiente com um ranço mineral.

Em volta da abertura, estavam visíveis restos da argamassa que sustentava o revestimento de azulejos. Era uma cerâmica caramelo, recorrente em casas daquela época. Não fosse pela existência da fenda, seria uma cozinha comum. Uma mesa ocupada por pratos, copos, aperitivos e bebidas aguardava o interesse dos convidados, enquanto falava o anfitrião.

– Ainda estava desempacotando as caixas da mudança quando comecei a escutar os azulejos assobiando. Seguindo o som, encontrei um pedaço de rejunte faltando. Um pequeno furo por onde soprava um ar com cheiro de cimento molhado. Ao tocar a parede, notei que os azulejos estavam todos descolando, por um fio. Primeiro imaginei que fosse um problema de infiltração, mas, ao arrancar as peças mais soltas, achei a passagem. Desde então costumo entrar aí com almofadas e livros, café, meus estudos do doutorado… Vocês sabem da minha tendência à reclusão. Depois que descobri esse espaço tenho passado mais tempo aí dentro do que habitando o resto da casa.

– Você não existe! Mas o que tem aí dentro, exatamente? Algum tipo de cofre, uma despensa?

Embora a mudança tivesse sido feita há vários meses, aquela era a primeira vez que ele recebia convidados. Os quatro eram seus amigos mais íntimos. A ideia de reunir um grupo maior era impensável. Ainda que tivesse alugado uma casa espaçosa para alguém que vive só, ele não era do tipo que aproveitaria as duas salas, o quintal e a cozinha ampla para fazer festas. Curiosamente, o que fazia com que ele se sentisse em casa naquele imóvel era ter descoberto um refúgio na parede de azulejos da cozinha.

– Não há móvel ou objeto algum aí dentro, nenhuma decoração. Não tem entrada de luz além dessa abertura para a cozinha. Há essa corrente de ar que não sei de onde vem. O espaço é grande demais para uma despensa. Talvez tenha sido uma moradia anexa, um conjugado que, de alguma maneira, acabou oculto entre a parede da cozinha e as velhas construções vizinhas. Vai saber. Bom, imagino que vocês queiram que eu vá na frente.

Os quatro assistiram atentos aos movimentos de ajuste do corpo à tarefa de atravessar o espaço estreito. O processo parecia exigir prática e algum contorcionismo: queixo apontado ao ombro, braços um pouco erguidos, com as palmas das mãos próximas à cabeça, tocando a parede interna da abertura. Os calcanhares se encontravam a cada passada curta. Sem demorar, já não se distinguia a figura da sombra. Pouco depois, silenciava também o som do corpo e das roupas roçando as paredes estreitas daquele espaço sem luz.

Sem que nada fosse dito, repetiram a coreografia fenda adentro, um a um.

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Ao centro da câmara, a primeira figura distendia seu corpo horizontalmente, aumentando sua largura algumas vezes, em um arco que se aproximava dos quatro outros corpos sem tocá-los.

A segunda figura pulsava intensamente, repetindo-se no espaço, multiplicando-se três vezes, até alcançar e atravessar a terceira figura que, por reflexo, expandiu-se em todas as direções e então contraiu-se lentamente em um movimento que circundava os três volumes idênticos. A interação entre os corpos estabilizou-se quando a segunda figura voltou ao estado aglutinado.

A quarta e a quinta figuras comprimiam seus corpos contra as superfícies do lugar, alternando movimentos de fusão e de separação. Ora somavam seus volumes em uma única massa, ora desconectavam.

Em um movimento dilatado no espaço, as massas conjuntas da quarta e da quinta figuras tocaram uma estreita passagem por onde corria uma perturbação fluida e constante.

O contato com a origem da perturbação atraiu a primeira figura que, posicionando-se ao lado daquele pequeno canal, alterou seu corpo para uma forma reduzida, cilíndrica e longilínea e resvalou passagem adentro. O processo foi repetido em sequência por cada um dos corpos.

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Cinco oscilações em um não-espaço. Dissiparão quando houver um quando.

Five Portraits 

The four guests analyzed the strange passage slashed into the middle of the wall as the host told them about his discovery. It was a slit made of two irregular concrete plates covered by spots of mold. Though narrow, it was as tall as a man with 6 inches of width on its superior side and 3 inches on the nearest side to the floor. Since it neither reflected nor emitted light, it appeared to be endless. From there flowed a constant air current that filled its surroundings with a rancid and mineral smell.

Around the opening, the remaining mortar used to fix the tile coating onto the wall was noticeable. The caramel-colored ceramic had been common in the houses of that time. Had it not been for the existence of the slit, the kitchen would have seemed ordinary. A table set with dishes, cups, appetizers, and drinks stood by waiting to pique the interest of the guests. 

“I was still unpacking my things from the move when I heard the tiles whistling. Following the sound, I noticed a portion of missing grout, a tiny hole from which a smell of wet cement came from. When I touched the wall, I noticed that all the tiles were hanging by a thread. At first I thought it was an infiltration problem, but when I pulled the loose tiles I found this passage. Since then, I go inside with some books and pillows, coffee, my doctorate studies… You guys know of my tendency for reclusion. After I found this place, I’ve spent more time there than in any other place in the house, believe me. “

“You don’t say! But what’s inside, exactly? A kind of safe? A pantry?”

Although he had moved some months before, it was the first time that he had guests. The four were his closest friends. The idea of having a larger group was unthought of. Even though he had rented a spacious house to live on his own, he was not one to make use of the two living rooms, the backyard, and the broad kitchen for parties. Curiously, what made him feel at home was finding a hideaway in the kitchen’s tiled wall.  

“There is no furniture or object inside. No decoration. There is no other way light can get in apart from the opening in the kitchen. I don’t know where the air current comes from. The place is too big for a pantry. Maybe it was an annex. A semi-detached house that in some way ended up hidden between the kitchen wall and the old adjacent buildings. Go figure. Well, I guess you want me to go first.” 

The guests looked around and awkwardly smiled at the thought of going inside, though none of them were against the idea.

The four friends attentively watched the body align its movements to the task of going through the narrow passage. The process seemed to demand practice and some kind of contortion: chin pointed toward the shoulder and arms slightly lifted with the palms of the hands near the head touching the internal walls of the opening. The heels tapped against each other with every small step. Before long, it was no longer possible to distinguish between the host’s shape and shadow. Soon after, the sounds of the moving body and the clothes brushing against the narrow walls of the caliginous place silenced. 

Without saying anything, they repeated the choreography within the slit. One after the other.

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To the center of the chamber, the first shape distended its body horizontally sometimes extending its length in an arch that came close to the four other bodies without touching them. 

The second shape intensely pulsated, repeating itself within the space and thrice multiplying. The reaction reached and went through the third shape’s body which in consequence, expanded itself in all directions, and then slowly contracted in a movement that enclosed the tripled body. The interaction between the bodies made the second shape return to its merged state.

The forth and fifth shapes compressed their bodies against the place’s surface, alternating movements of fusion and separation. Sometimes adding their volume in a single mass, and sometimes disconnecting.  

In a dilated movement in space, the conjoined masses of the fourth and fifth shapes touched a narrow passage from which ran a constant and smooth disruption.

The contact with the root of the disruption attracted the first shape which in positioning itself next to that small channel, alternated its body to a reduced, cylindrical, and slender form to then slip into the narrow passage. The process was repeated in sequence by each one of the bodies. 

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Five oscillations in a non-space. They might dissipate when there is a when.